Jardineiro Fiel

Quando olhamos tudo à volta cheio de concreto, qualquer manifestação da natureza passa a se tornar uma espécie de oásis para os olhos: puro deleite. E foi assim que eu me senti aqui no condomínio nesse ultima semana. Um jardim específico foi totalmente mudado, restaurado. Um dos espaços entre os prédios se transformou em uma verdadeira pracinha do interior com flores, pedrinhas brancas, postes de luz e bancos pintados na cor branca, que ficam postados nos dois caminhos entre as gramas verdinhas. À noite o cenário é um verdadeiro deslumbre com as lâmpadas acesas e a lua a completar o quadro. Fruto da ação e do capricho de um homem, o Ronaldo, nosso Jardineiro Fiel. Acredito que esse seja um trabalho da sensibilidade de um grande artista, que transforma a natureza com boa mão para que muitos deixem de apreciar apenas tijolos e argamassa.


Há duas semanas, minha Mãe chegou muito abalada em casa. Toda vez que ela desce, tem por hábito cumprimentar Ronaldo e perguntar como vão as coisas. Diferentemente de sempre, nem tudo estava bem. Ronaldo tem um filho chamado Guttemberg, de 13 anos. Devido a uma falta de luz na escola, os meninos foram liberados da sala. Guttemberg e outros amigos atravessaram a rua para comprar doces numa vendinha do outro lado. Todos passaram, mas o menino foi atropelado por um carro guiado por uma senhora de 70 anos. Guttemberg foi parar no hospital: CTI - coma. Sua mãe teve que deixar o emprego para dar assistência ao filho. Ronaldo, que havia conseguido guardar com suor suas míseras economias, via tudo indo embora (e contou tudo à minha Mãe com conformidade, mas a voz bastante embargada). Minha Mãe ofereceu ajuda e ele, respeitoso, não recusou, mas também disse que só apelaria a ela caso realmente precisasse. Minha Mãe orou com ele ali mesmo, temendo pela saúde e pelo futuro do rapazinho, seriamente machucado. “É meu único filho”, lamentou ele, sentindo-se verdadeiramente impotente diante do acontecido. E vocês imaginem o que é um pai que sente que não pode proteger o seu filhinho. Guttemberg é um menino bom, vai à igreja, cumpre as suas obrigações; mas foi pego pela fatalidade de sua desatenção de menino.


Vejam vocês... Ronaldo poderia ter parado de trabalhar, mas não o fez. Pelo contrário, ele conseguiu fazer o melhor paisagismo de todos os tempos para o novo jardim. Em meio à sua dor, o homem conseguiu criar a beleza para tanta gente com problemas bem menores, pudesse encontrar ali o seu oásis. Minha Mãe, também poderia ter ficado na dela, mas não o fez. Depois de me contar toda a história com lágrimas nos olhos, ela arregaçou as mangas e foi à luta para dar mais dignidade a um homem já tão digno. Colocou um aviso em cada portaria dos prédios do condomínio, contando por alto a história de Ronaldo e pedindo uma contribuição, para ajudá-lo em um momento tão delicado. Mesmo com todo o amor que circula no coração das pessoas no fim de ano, não achei que a quantia recolhida tenha chegado a um valor justo. Mas para quem é pobre e está em profundo estado de necessidade, qualquer quantia é um alento. E muito mais: qualquer ato de solidariedade dá a dimensão de que não estamos sozinhos e de que em meio a tantas dores, alguém vela por nós.



Posso dizer a vocês que não apenas a minha Mãe (e aqueles que disseram sim ao apelo e contribuíram da forma que podiam) vela por Ronaldo. Deus, em primeiro lugar, vela pela vida de Guttemberg. Depois de mais de oito horas de cirurgia – ele foi atingido na cabeça – o menino sobreviveu. Semanas depois ele saiu do coma e hoje a gente recebe a notícia de que, embora seguindo internado, Guttemberg apresenta melhoras e já reconhece sua mãe e seu querido pai: Ronaldo, o Jardineiro Fiel.