A janela era
a tela. Visão para o mundo. Mesmo presa, ela dava liberdade extrema. Chovia lá
fora e a menina morria por dentro. Até chegar a ela, a janela, e ver o mundo.
Um mundo molhado é verdade, mas até por isso, um mundo mais cheio de
possibilidades.
Entre o
partir e dormir e o ali ficar e imaginar; a segunda possibilidade lhe pareceu
bem mais sedutora. Ela certamente era muito nova para conceituar Joseph Campbell, mas sabia, de forma
inata, que o chamado à aventura era algo irresistível na jornada de qualquer
herói. Dispensou a cama, lugar quente, e ficou com o queixo encostado na umidade
do mármore – anteparo de sua liberdade, marco de sua altura, fronteira da sua
imaginação.
Pelo vidro,
ainda fechado, conseguia ver apenas formas difusas, quase indistinguíveis
devido ao mosaico formado pelos pingos precipitados. Era uma boa metáfora para
a vida: as coisas mais simples nos parecem complicadas se mostradas através de um
filtro, que fez o conhecido, diferente, estranho, condenável, principalmente em
dias de tempestade interna. A fôrma* transforma a forma, altera os sentidos,
provoca.
Entre o
partir e ficar, a menina ficou a imaginar. Embarcou na aventura e fez da tela
borrada a passagem para o mundo dos sonhos. A tela bordada ao sabor da
fantasia. Com seu dedo, juntou gotas e compôs formas que davam vida à
imaginação. Imaginou um futuro que lhe parecia distante, mas que num instante
ia lhe chegar de encontro e lhe tomar de ensejo.
Assim, numa
simples brincadeira, ela viria a descobrir de forma plena o que Einstein
teorizou e revolucionou. Mas instantes antes, quando a chuva interrompera a
possibilidade de correr lá fora, o tempo era absoluto, como definiu Newton.
Ainda o era: absolutamente entediante, se não fosse a união de gotas a dar
forma a uma nova possibilidade, guiada pela força da imaginação.
Se os olhos
são a janela da alma, a menina com calma expôs o que nela se encontrava: uma cerca,
um jardim, o sol iluminando sorrisos sem fim. Homem e mulher, uma casa, uma
chaminé. A verdade é que a felicidade está escondida na simplicidade e mora
numa casa pequenina. E a sabedoria, quem diria, também se escondia no coração
de uma pequena, cujo mais problema era não poder brincar lá fora. Mas por
dentro, mal ela sabia, construía sonhos, sedimentava vida.
Assim como
no mito de Platão, são muitos os dias da nossa existência em que nos
encontramos presos em uma caverna, vendo o mundo através de formas
translúcidas. Seja através de sombras, projeção da realidade, ou do vidro
molhado... As menores coisas são capazes de borrar a nossa capacidade de
cognição e decodificação daquilo que é real. E do porque vale à pena seguir a
nossa jornada. Navegar é preciso, em águas límpidas ou turvas.
A caverna da
menina era a sala seca, fronteira com a rua alagada. A janela era o portal
entre dois mundos. Ao abri-la, ela sentiu a realidade lhe golpear o rosto. A
pele molhada aqueceu a alma e inundou os olhos o gosto pela liberdade
readquirida. A ousadia poderia lhe valer uma surra, mas é preciso coragem para
romper seus próprios limites.
E ela foi
além. Na mesinha lateral, pegou uma folha de papel. Depois de mil dobraduras, a
folha inerte ganhou vida: era um barquinho. E o barquinho, frágil em sua fôrma*,
mas firme em sua forma, partiu para uma aventura ainda maior. Rompeu a sala,
pulou a janela, desceu rua abaixo, levado pela correnteza de um rio que se
formara rente à calçada. O destino era incerto. Certo mesmo, era a vontade da
menina de se aventurar, romper barreiras, cruzar fronteiras, ter na palma das
mãos o leme, destino de uma vida de caminhos incertos.
Esse barco continua a vagar, singrando mares que nunca dantes foram imaginados, descobrindo fôrmas e formas que não eram coisas de menina, mas que foram sendo traçados por ela e para ela. Por nós e para todos nós. Esse barco estará sempre a disposição de quem tem disposição para imagina, criar, e romper as barreiras do conformismo estabelecido pelas circunstâncias. Navegar é preciso, embora viver não seja tão ‘preciso’.
* trabalho de faculdade :)
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