“Muitas vezes parece-me glorioso ouvir um coral de cinquenta ou cem vozes em que há harmonia. Mas, quando há uma pessoa desafinada, posso ouvir aquela terrível voz prejudicando o coral todo. Minha vontade é que o desafinado fechasse a boca. Entretanto, muitas vezes, aquele que está cantando fora do tom pensa que a sua execução está maravilhosa. Ele não consegue ouvi-la, mas os outros conseguem...”
Em seu livro “Minha Força Diária”, Samuel Doctorian falava sobre a importância da unidade no corpo de Cristo (a igreja) e usou uma ilustração a respeito de um coral para dar ensejo à mensagem. Sempre leio esse livro, que traz pequenas lições cotidianas, antes de dormir e foi justamente esse trecho que me tirou do lugar comum. Vou voltar mais uma vez no tempo e pegar emprestado o tema que a Aline (Step Tops To Be) levantou para o blog: solidariedade.
Não sei se já contei por aqui, mas durante muito tempo eu fiz parte de um coral (de vários ao longo da vida e de nenhum atualmente). Minha voz e ouvidos foram sendo treinados para a música desde muito pequena: cinco ou seis anos. Harmonia, melodia e ritmo. Quando tinha nove anos, comecei a ganhar pequenos solos em trechos de músicas, mas só vim a ter coragem de soltar mesmo a voz anos mais tarde. Gosto de canto coral, de atividades em grupo.
Já pós-adolescente, fazia parte de um coral que era composto, em sua maioria, por gente décadas (duas ou três) mais velha que eu. Para mim nunca foi um problema estar entre pessoas mais experientes. Na verdade, achava (e acho) um barato. E em coral, principalmente com gente mais velha, a palavra que reina é solidariedade.
Com vozes, digamos, mais desgastadas ao longo do tempo, é natural que aconteça o que o trecho que separei lá em cima destaca. Um instrumento quando usado em demasia, tende ao desafino. Aconteceu comigo, claro. Não era eu quem desafinava, que fique claro também (uia!). Nosso coral era ótimo, um clima terapêutico imbuído de música, que eleva o espírito, e muita amizade, que enleva a alma. E uma ou outra pessoa que escorregava em sol maior. Com esplendor.
A Lúcia era assim: um coração enorme e uma caixa torácica poderosa, mas a afinação... E ela ficava bem ali perto de mim. Como sou baixinha, sempre era posicionada na parte da frente da fila de apresentação do coro. A Lucia se postava ao lado direito na segunda fila. Ela praticamente cantava dentro do meu ouvido e tinha a voz forte. E desafinada, coitada. A maestrina tentava e a coisa não fluía. Mas a Lúcia sempre foi uma guerreira.
Um dia, totalmente na camaradagem, resolvi me postar ao lado dela. Passei a cantar dentro do seu ouvido. A gente não era do tipo que sabia ler plenamente uma partitura, mas eu ia com o dedo mostrando o sobe e desce das bolinhas, que marcavam as notas. Eu e a Lúcia ríamos a beça disso. Ela era a mãe de dois grandes amigos à época.
Acho que ela nunca aprendeu o do-ré-mi-fá, mas e daí? Cantar enlevava seu espírito e nos garantia uma ótima companhia. Anos mais tarde, ela descobriu que estava com câncer. E a música, muito mais que diversão ou louvor, passou a ser parte de um processo terapêutico. Lúcia cantou até o fim e antes de ir deixou clara a sua gratidão, contando aos meus pais que eu a ajudava a levar a sua voz até o céu, perto de Deus.
A Lúcia se foi já faz anos. Mas a sua história permanece como mostra de que solidariedade desinteressada – e que, portanto, só assim é solidariedade – redunda em benesses muito maiores que aquela que a gente possa vir a imaginar – porque esperar retorno também é uma espécie de desvirtuação da solidariedade, embora a gente aja como se ela fosse inerente.
Mas hoje, quando vejo um coral, lembro dela. E quando alguém desafina, eu não me aborreço. Sorrio para cima. Porque a voz dela, fosse como fosse, sempre estaria bem perto de Deus, porque a Lúcia cantava com o coração.
2 comentários:
Os corais também sempre estiveram em minha história. Desde cedo, Papai me incentivou à música e devo a ele as poucas capacidades que desenvolvi. Sem muita técnica, sei que consigo "manter a linha" da afinação, mesmo com um desafinado ao lado. Acho engraçado como muitos desafinados não se dão conta disso e cantam repletos de empolgação. Acho bonitinho, por vezes cômico. Afinal:
"Porque no peito dos desafinados, no fundo do peito bate calado. No peito dos desafinados também bate um coração!"
Saulo, mas há desafinados que nos fazem chorar às vezes, não?! hahhaha
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