23.11.11

Costurando a Vida



Crônica – “Costurando a vida”

Por Bibi de Bicicleta

Tem certos dias que a gente se pega pensando em um assunto que não tem nada a ver com o que realizamos, vimos ou pretendemos fazer no dia. Hoje estou pensando em colcha de retalhos. Mas acredito que para tudo existe uma história, uma explicação, que pode servir como base para explicar o pensamento inicial. Caso não tenha, a gente credita como o bom e velho devaneio mesmo!

A primeira colcha de retalhos que vi na vida estava na minha própria casa. Foi feita pela minha avó e como todas as coisas feitas por vovós, ela tinha cara e consistência de carinho. Não convivi muito com a minha avó, por isso mesmo, cada uma de suas histórias teve peso extra para mim. Foi uma guerreira, sem dúvida, mas acima de tudo uma mulher cheia de contradições. Como a maioria de nós se apresenta em algum momento da vida.

Ela fez aquela colcha para os meus pais usarem, mas um dia ela se tornou minha através de um afetuoso afano de criança que adulto não liga. Achava interessante ficar olhando a combinação de seus recortes, a linha grossa, vermelha, costurada num ziguezague xadrez, que passava por cima de cada junção. Não tinha forro. Usei até rasgar. Aliás, até que se desfizesse, porque até mesmo cheia de buracos ela continuava sobre a minha cama.

Hoje percebo que a vida também é como uma colcha de retalhos. É a metáfora da nossa própria vida: somos feitos de muitas partes e estas formam o todo. Somos costurados às coisas, fatos e pessoas através de linhas tão finas, muitas quase imperceptíveis. Cada fração de momento é de um tamanho, padrão, textura e cor. Cada qual com sua importância e peso. Somos feitos de muitos pedaços, de muitas matérias. Somos a união da lembrança daquilo que se foi, esperando pelo próximo pedaço, a esperança daquilo que virá a ser. Somos o costureiro da nossa própria história, responsáveis por pontos que ferem, marcam, mas que também alegram e deixam coloridos registros.

Vovó não era dada a demonstrações de carinho, mas se preocupou em deixar esse retalho construtivo que me acompanhou durante tanto tempo. E pequenos retalhos têm o poder de te tirar da inércia dos sentimentos, do conformismo da falta de conexões. Somos ligados ao passado pela força do presente que vivemos e do futuro que plantamos para nós. Minha avó teve dez filhos e um sem número de netos e bisnetos. No fim da vida, já não se lembrava do meu nome e me chamava apenas de menina. Tem horas que penso que ainda sou aquela menina, costurando a sua própria colcha de retalhos. 

* conto reeditado a apreciado com louvor pela Professora de Narrativa na faculdade....

3 comentários:

Leopoldo E. Arnold disse...

Gostei da crônica. Fez-me lembrar da minha avó, já falecida e que há muito também merece uma crônica minha. As boas línguas me contam que eu era o seu neto preferido. Deve ser por isso – penso eu – que ela fazia cafés coados tão bons para mim. Colchas de retalhos e cafés das avós a gente nunca esquece...
Você ainda É (sim, um É maiúsculo) aquela menina, pois o adulto nada mais é que uma criança usando máscara...
Eu também ainda sou aquele menino tomando o café da minha avó.
O adulto é um personagem que a criança inventou para brincar.
L. E. Arnold.

Bibi disse...

Que bom que vc gostou. Eu não era nem de longe a neta preferida e ela nem lembrava o meu nome! hahahaha Mas isso não muda em nada a mística e a mágica que envolve as coisas de vovó. É um encantamento por completo.
Você bebia café desde novo? Minha mãe sempre disse que fazia mal e fica resmungando, porque aprendi a beber com uma tia minha. Hoje eu AMO café!

Estou de acordo (finalmente!!!!!) de que ainda SOU aquela menina, mas definitivamente aquela menina não é mais a mesma. A máscara do adulto borrou certas lembranças, trouxe dores e receios e desesperanças de todas as sortes, incutiu a tal da dúvida... Não gosto de brincar com essa eu adulta, mas adoro quando posso ser a crianças com as coisas boas que a vida adulta também me brindou.

Sandra Lee disse...

Olá, sou estudante de Artes Visuais e utilizei sua crônica num trabalho. Muito linda.