3.7.08

Viva a Vovó

Quando eu nasci, minha avó já tinha idade para ser avó dela mesma. Além disso, quando pintei no pedaço, ela já tinha que se virar com mais de uma dezena de netos, fazendo as conexões naturais de filho de quem, irmão de não sei mais quem. Acho que chegou uma hora em que ela perdeu a conta. Ou simplesmente achou mais fácil gravar apenas o nome dos nossos pais. Ela teve mais de uma dezena de filhos também e todos se casaram. Ou seja, era muita gente para uma velhinha que já estava bem velhinha.

Nós não tivemos muita convivência, já que morávamos em cidades distantes. O que mais me agrada, hoje, é saber que os raros encontros deixaram lembranças bem marcantes. Toda a história de vovó parece ter o enredo onírico. Os fatos parecem ficar gravados em uma parte especial da sua memória afetiva. Ainda mais no meu caso, que só tinha aquela avó. E ela parecia egressa de um mundo tão diferente, afinal, nasceu em 1902.

Lembro de sair correndo do carro, depois de uma viagem meio exaustiva – eu sempre fui elétrica e ficar presa numa caixinha [o carro] por um longo caminho sem fim era sinônimo de tortura. Sou da época da pedra polida, meu bem, sem mini-game, sem radinho, DVD então, se me contassem, eu ia pensar que era coisa dos Jetson’s. Também nada de direção hidráulica ou ar-condicionado. Meu cabelo sempre chegava duro, de tanto vento que eu pegava na cara. Ia igual a cachorro alegre com a cabeça para fora da janela. No caso, meu pai só me deixava colocar o nariz. Eu dizia que estava enjoada, mas na verdade eu devia estar absorvendo um pouco do sabor da liberdade. E como era o meu pai ao volante, você pode imaginar que foi daí que nasceu a minha fissura por Montanhas-Russas.

Corta para a parte de sair correndo do carro...

Eu entrava pelo quintal como a filha do vento e ia direto para a salinha da televisão, que ficava ao lado da cozinha. Entrava que nem um trovão e dizia: "oi Vó! Quem sou eu?" Coitada da velha... Se via em apuros... Lembro que ela me olhava tanto por trás daqueles óculos lente de garrafa [que ela só usava para ler a Bíblia e ver TV], até que alguém assoprava de quem eu era filha e ela, mesmo sem dizer o meu nome, soltava aquele sorriso de satisfação. “Você está grande!”. Era sempre a mesma frase. E esse era o máximo de carinho que conseguia tirar da minha avó! Os beijinhos de boas-vindas. Ela nunca foi dada a demonstrações de afeto. Depois, a gente dava uns agarrões nela à força e ela fazia bico. E aquela boca toda rachadinha sempre me chamou a atenção... Talvez eu ficasse intrigada com o que o futuro me reservaria. Se eu fosse como a minha avó, talvez eu tivesse a chance de viver com muito mais tranqüilidade. Ela morreu com 103 anos. E costumo dizer que morreu simplesmente porque se cansou de existir. Mesmo depois de completar 100 anos, a gente ainda via, aquele corpinho frágil, falando sozinha. blablabla blablabla...

- Que isso Vó? Tá falando sozinha?
- Não, estou pedindo ao meu Deus para me deixar viver mais um pouquinho.

Era de uma simplicidade e de uma sabedoria encantadoras.

Existem outros pontos que jamais vou me esquecer. Até os 90 anos, ela ainda lavava o banheiro da sua casa. Se virava super bem, até o peso da idade atingir as suas pernas. Vovó começou a cair com facilidade e foi se entregando até parar em uma cadeira de rodas, o que facilitava a sua locomoção até o jardim. Ela amava ficar sentada naquele jardim sob o sol. Tinha um banco de madeira enorme e não era raro ver meus tios ali sentados, em volta dela. Vovó adora cachorro. Teve não sei quantos e cada um protagonizou uma história mais engraçada que a outra. Um dia eu conto. O preferido dela, no entanto, era o Sebastião. Eu nem sei qual era a raça dele, mas sei que viveu muitos anos por lá. Não latia, não entrava na casa e adorava roer os ossos de frango que sempre sobravam do almoço. Quando o Sebastião morreu, minha avó chorou de soluçar. Era como se estivesse perdendo o primeiro filho. Depois ela perdeu mesmo alguns de seus filhos legítimos. A “sorte” é que a cabeça já não estava tão boa para sofrer essa dor injusta. Ela podia não gostar de carinho físico, mas era toda coração. Não deixava a visita sair sem café e umas rosquinhas que ela mesma preparava. Ah, também tinha aquele bom papo na grande cozinha. Isso era de lei. Cansei de ver gente de rua tocando a campainha para ganhar um pouco de comida ou apenas um copo de água. Ela não tinha muito, nunca teve, mas o que tinha era repartido com quem precisava mais que ela. Nunca tinha pensado nisso, mas é uma grande lição. Minha mãe aprendeu que amar ao próximo é servir e ela exerce esse aprendizado com louvor. No entanto, o tempo, a necessidade, o marido, os filhos, eu, fomos mostrando que além de servir é preciso abraçar, se tocar. Hoje adoro ir deitar com a minha mãe no fim da noite. É a hora que a gente mais está junta física e emocionalmente. Ah! E eu aprendi também que amar é servir e que amar também é abraçar. Por isso meu slogan entre os amigos, como bem observou a Bia Bug, é: “Me dá um abraço?”.

Vovó não tinha dentes. Era como olhar a boca de um neném com 100 anos. Esquisito. Mas aquela boca sem dente sabia “se virar”. Minha avó traçava uma pêra dura – típicas do interior – melhor que eu com meus dentes de leite. Também mandava ver na rosquinha, na broa e no frango de cada dia. Tinha um outro fato muito curioso, para não dizer perturbador: ela não bebia água! Detestava coisas líquidas. Isso, claro, trouxe alguns problemas. Mas ela parecia tirar de letra. Ficava revoltada quando me via bebendo água. Eu era praticamente um camelo:

- Menina, vai beber a minha água toda!

Eu morria de rir. Mas ela estava falando sério! Sua outra peculiaridade era ser surda. No começo, bastava gritar. VITROLA! Eu detestava quando a minha mãe voltava da casa dela, porque ela simplesmente esquecia de diminuir o volume da voz.

- Mãe, estou do seu lado! Tá gritando por que?

Minha mãe ainda faz isso, mas agora é quando usa ou deixa o telefone. Tem um delay para o som ficar soround. Com o tempo, claro, minha avó foi deixando de escutar cada vez mais. Eu tentava escrever no papel, mas ela não compreendia a minha letra. Um dia, falei para o meu pai:

- Isso é de ficar maluco!
E ela começou a rir.
- O que foi Vó?
- É mesmo, velho caduco!
Desce o pano rápido!

Por fim, a lembrança mais gostosa também seja a da convivência com os meus primos. Lembro que ficávamos na sala e as sete horas da noite começava a tocar aquela musiquinha na Globo. A criançada vinha correndo lá de dentro, gritando: Os Trapalhões! E aquele era o ponto alto da semana. Eu curtia muito o programa, mas lá era especial, era diferente, era com platéia. Tão gostoso quanto quando a minha mãe me levava para ver os filmes do Didi e companhia. Numa época em que o cinema nacional se resumia apenas às produções do Renato Aragão. Uma vez, eles brigaram e o Dedé fez um filme com o Mussum e o Zacarias. Eu lembro de perguntar a todo momento: "é agora que o Didi aparece?" Para mim, a qualquer momento, nem que fosse na subida dos créditos, ele ia pular na tela. Eles voltaram às boas, alívio. E aí morreu o Zacarias, depois o Mussum. Eu ficava vendo o Renato prosperar – mérito do talento dele dentro e fora de cena, fruto de muito trabalho legítimo e de oportunidades bem aproveitadas – e o Dedé a se lamentar através da imprensa, o sonho perdido. Achava injusto quando culpavam o Renato por não ajudar os antigos companheiros – porque atrás do Dedé, veio um séquito de outros colaboradores – afinal, ele soube investir em sua carreira; ele era genial em fazer seus textos e sitcoms; soube gerenciar isso com maestria. Depois vem a galera da boquinha querer passar o pires? Não pode gente. Ajudar é um ato nobre, mas não dá para ajudar a todos, nem ficar dando peixe sem ensinar a pescar; do contrário, a fonte seca! Achei muito bacana o Beto Carrero dar uma chance ao Dedé. E o velho palhaço mostrou que quem tem o circo nas veias, nunca perde os aplausos no picadeiro. O Beto morreu. O Didi finalmente conseguiu trazer o Dedé para o seu programa, o que aconteceu muito recentemente. Ato de bondade, de caridade, de companheirismo, fruto do talento que o Dedé voltou a apresentar, whatever. Só sei que é muito bom vê-los juntos outra vez. Me remete à uma época boa, a época em que ir para a casa da Vovó era o ponto alto das férias de julho. E sem perceber, comecei esse texto no dia 29 de junho. O dia do seu aniversário, quando ela faria 106 anos. E na onda do Ivo Viu a Uva; Viva a Velha Vovó.

5 comentários:

Anônimo disse...

Menina, vc demora a escrever, mas tb, qdo escreve... :P Deu a volta no mundo. hahahaha, falou da vó, passou pelos trapalhões, passado, presente e futuro e ainda voltou pra vó. Ótimo! Beijos!

Saulo disse...

Não conheci sua vovó, mas de tanto ouvir belas histórias sobre ela, sinto como se a tivesse conhecido!

Agora... quanto ao Ivo... tem certeza de que aquilo que ele viu foi uma uva?!... Lá em pernanbuco isso tem outro nome!!

Ana Martins disse...

Bia, eu tenho uma bisavó nascida em 1902! É a vovó Joaquina! Apesar dela não estar mais neste nosso mundo, está todos os dias nos meus pensamentos, palavras e coração!
Viva nossas vovós!!!

Anônimo disse...

VIVA! :)


Eu amei esse texto.

Sambeira disse...

Queridona, amo seu jeito fofo, carinhoso de escrever, me inspirei nele pra fazer um post.
é tão bom vir aqui, e ver quer através do blog, vou te conhecendo e te adimirando cada dia um pouco mais.
te adoro!