26.3.09

Cegos

Tim Walker

Estava sentada no metrô lendo um livro para entreter a viagem. O texto falava sobre valores. Era argumentativo. Questionava sobre quais eram esse valores passados de uma geração a outra. Fiquei tentando encontrar respostas na minha própria experiência. O meu conceito de valor tem que passar além do ensinamento religioso. Uma vez que religião se ensina sim, mas só abraça quem acredita em suas doutrinas. Fé não é algo concreto e nem abstrato. Fé não é sentimento. É como o vento, que você sente, mas não vê. E fui ruminando essa perspectiva até a minha estação.

Saí do vagão com preguiça de subir o lance de escadas que se interpunha em meu caminho. Olhei para frente e vi um casal de cegos vencendo os degraus na maior disposição. Sozinhos. Rápidos. Ele com a bengala e ela segurando o braço dele. Um, dois. Um, dois. Um, dois. Sem parar, sem vacilar. Aumentei o meu ritmo, porque não queria perder aquela dupla de vista. Ao sair da estação, eles começaram a perguntar para as pessoas em volta onde havia uma igreja evangélica. Os motoristas do ponto de táxi fizeram caras de interrogação, tentando balbuciar alguma coisa. Teve um até que apontou a direção. [Pumf! Pensei eu... Quem é o deficiente agora? As pessoas que não enxergam ou a pessoa que dá uma informação ineficiente?].

Assim que venci os degraus, me aproximei do casal. “Para onde vocês querem ir?”. “Posso acompanhar vocês até lá”, eu me ofereci. E entreguei o antebraço [a parte perto do cotovelo], para que a moça cega pudesse se apoiar em mim [aprendi que é assim que se faz e já me posicionei da maneira certa para eles]. “Nós vamos andar o equivalente a um quarteirão”, disse. Eles têm noção de deslocamento sim. E fomos andando. “Eu conheço um pouco desse lugar. Já passei por aqui”, me avisou a moça. Ela é esperta e gosta de um papo. “Passamos em frente à Lojas Americanas. Se depois você quiser alguma coisa Fulano...”. [Olhei para ela! Como é que ela sabia? O som das coisas... Assim como eu me preocupo em ver os obstáculos à frente e foco nisso; toda a atenção dela estava voltada para escutar as coisas ao seu redor]. Àquela altura dos acontecimentos, a gente não estava apenas andando, mas quase correndo. Eles estavam me impondo um ritmo muito rápido. E eu tendo que balançar o braço para que essas pessoas desavisadas, que andam olhando para ontem, não colidissem com o nosso grupinho de três.

Eu estava mesmo preocupada com o ritmo das nossas passadas. Falei isso para eles. “Vocês andam muito rápido. Reparei isso, enquanto vocês subiam as escadas do metrô”. Ele responde: “A vida passa voando, moça. A gente não tem tempo a perder”. Eu dei risadinha e disse: “É verdade”. A cega completou, marota. “A nossa deficiência é no olho, não é no pé não!”. E ria da bobeada que eu dei! Ela tem razão! Não precisa de outras deficiências, que não a sua de origem. Fiquei tão orgulhosa daquela dupla e da lição de vida que eles estavam me dando...

Nosso destino chegou. Era a direção oposta da que eu devia ir. Mas foi o melhor desvio que eu tomei nesses últimos tempos. A gente pensa que está fazendo algo nobre ao ajudar as pessoas. Que nada! A resposta interna é tão grande, que o auxílio, na verdade, acaba sendo um grande prazer. E a lição sempre vem. Ali, por exemplo, eu percebi que não são muitas as pessoas que se dispõe a orientar o outro. Existe gente com medo de gente e isso é uma coisa que não posso compreender. Foi quando me voltou à mente a questão dos valores passados de uma geração à outra.

Tenho exemplos em casa! Minha Mãe sempre ajudou aos cegos. Lembro de ouvi-la contando como fez, principalmente, de vê-la fazendo. Foi com ela que aprendi a questão de deixar que a pessoa se apóie no seu antebraço. Porque ela aprendeu isso com um cego, durante uma ajuda. Isso sempre foi muito espontâneo e natural aqui em casa. Também não foi a primeira vez que ajudei um cego a atravessar a rua; ou que falei com um surdo; ou que segurei o meio braço de quem não tinha um inteiro [um grande amigo do meu Pai perdeu metade de um braço em um acidente e para mim, ainda muito menina, nunca houve nada de diferente]; ou tive paciência com gente de idade; ou dei carinho para pessoas no hospital ou orfanato.
Não! Eu quero refutar a idéia de que estou fazendo um texto para mostrar que sou boazinha. Não, não sou! Isso é um pingo d’água dentro de um oceano de oportunidades. E ganhei mais com essa “carona”, que eles. Exemplos. Somos uma geração que precisa de exemplos práticos para o dia a dia. Eu tive exemplos dentro de casa. Hoje mesmo, ao contar o fato à minha Mãe, pude ver seus olhos brilhando de contentamento e um sorriso de quem percebe que a lição foi aprendida. Muito mais que isso: que ela parte de mim, porque é parte de mim. O mais engraçado é que hoje almocei com um amigo especial e ele me disse: “Você é muito complicada!”. Eu fiquei indignada! Não sou complicada baby, eu gosto é de simplificar a vida sugerindo novas cores à palheta da existência!

4 comentários:

Sambeira disse...

ai que linda sua história, q emotivo, que carinhoso, que simples, e nada complicado há nisso: bondade.

Bibi disse...

Resumiu bem! Que bom que vc comentou! Eu amei escrever isso, mas ninguém havia comentado!

Saulo disse...

Estas coisas me tocam a alma! Dentre outros motivos, o meu amor pelos ditos "marginalizados" me levou à Fisio. Hoje vejo que marginalizados somos todos!

Bibi disse...

Essa bondade - maior e melhor - eu vejo muito em vc! E isso me lota de orgulho! Sempre!